Nas vésperas de mais uma edição da Tábua de Queijos e Sabores da Beira, fomos visitar o antigo Ministro da Agricultura e atual Presidente da Comissão Vitivinícola Regional do Dão, à Quinta da Ladeira da Santa, na freguesia de S. João da Boa Vista, onde a sua vinha se estende numa área de cerca de 10 hectares.
Arlindo Cunha falou-nos do projeto que gere juntamente com o filho, João, enólogo, e o resto da família, contando ainda com alguns amigos que, não raras vezes, são “mobilizados para ajudar”. Apostado na produção do genuíno vinho do Dão, com as suas castas tradicionais, o antigo governante entende que esta sub região tem, ainda assim, de trabalhar “muito e bem” e durante gerações para “ter um papel de relevo no contexto da Região Demarcada”.
Notícias de Tábua – Quando é que nasce o projeto de produção de vinhos com a marca Ladeira da Santa? Já existia alguma vinha na quinta e qual a área plantada de novo?
Arlindo Cunha- O projeto nasceu em 1996, logo que cessei as funções governativas que desempenhei durante 8 anos. A ideia, na altura, era fazer uma pequena vinha exclusivamente para autoconsumo, na boa tradição beirã…A primeira vinha tinha pouco mais de meio hectare e foi plantada num terreno da família que tinha pinheiros e marmeleiros e cuja localização foi escolhida por uns amigos enólogos e agrónomos, especialistas na matéria. Como gostei muito dos vinhos ali produzidos, entusiasmei-me e fui plantando mais.
NT- Qual é a área total de vinha?
AC– A Quinta da Ladeira da Santa tem atualmente cerca de 10 hectares de vinha.
NT- Qual é atualmente a capacidade de produção?
AC – Com a área e as infraestruturas que temos, podemos produzir e laborar até 100.000 quilos de uvas.
NT- Quais são as castas de eleição?
AC-Sempre quis fazer um vinho do Dão genuíno. Foi por isso que, desde o início, apostei nas castas tradicionais da nossa região. Nas tintas temos mais de 60% da área total plantada com Touriga Nacional (que poderemos designar como a rainha das castas de vinhos tintos, pela sua intensidade aromática, estrutura taninosa e extrema elegância), seguida do Alfrocheiro e um pouco de Tinta Roriz e de Jaen. Nas brancas a nossa grande aposta é na casta Encruzado (outra das grandes bandeiras do Dão, pela singularidade dos seus vinhos minerais e longevos), seguida da Malvasia Fina, do Bical (que no Dão também se chama Borrado das Moscas). Também temos um pouco da Arinto, Gouveio e Uva Cão.
NT -Quais são os principais mercados / clientes dos vossos vinhos ?
AC – Como estamos posicionados num nível médio-superior de preços, vendemos essencialmente para o chamado canal HORECA, que inclui a hotelaria, restauração e garrafeiras. Por isso, não vendemos na chamada grande/média distribuição. A única exceção é em Tábua, onde sempre vendemos no Intermarché desde a nossa primeira colheita em 2000.
Porém, como o vinho não é um produto industrial, a qualidade nem sempre é a mesma todos os anos, já que resulta da natureza, incluindo o clima, que pode ser muito prejudicial, especialmente se vêm geadas fora do tempo ou excesso de chuvas na época das vindimas. Por isso, quando temos alguns lotes de vinho que não satisfazem esse padrão estratégico de qualidade, não o engarrafamos.
NT – Qual a origem do nome da Quinta Ladeira da Santa?
AC – É o nome de um dos locais onde as vinhas estão implantadas. Por vezes brincam connosco, a propósito do trocadilho com a “Santa da Ladeira”…Costumo responder que são vinhos abençoados…Mas devo ainda dizer que também registámos esta marca na classe 33 do INPI, que é a dos produtos vínicos…e que, por isso, poderemos um dia, se assim entendermos, colocar no mercado um vinho com essa designação.
NT- Não está sozinho neste projeto, um dos filhos também está ligado à vinha?
AC – Desde há uns anos que o meu filho João, que é Enólogo e Engenheiro Alimentar, tem assumido um papel crescente no projeto. Atualmente é ele que explora as vinhas enquanto empresário agrícola, para além de ser acionista da empresa e o responsável pela enologia. A minha mulher, Margarida, que comigo é sócia-gerente, assegura o apoio administrativo; a filha Rita e o genro Paulo têm os seus afazeres profissionais no Porto e ajudam na medida das suas disponibilidades. E até os amigos são “mobilizados” para ajudar – e não poucas vezes! Ou seja, somos uma empresa verdadeiramente familiar, que é também um ponto de encontro da família e dos amigos. Uns e outros são a nossa maior riqueza!
NT- Acha que Tábua se tem afirmado também nesta área da vitivinicultura?
AC- Sem dúvida. Apesar de estarmos na sua periferia sul, somos parte plena integrante da Região Demarcada do Dão e constituímos com Oliveira do Hospital e Arganil a Sub-Região do Alva, que é uma das 7 sub-regiões em que se divide a Região Demarcada. Talvez pela sua localização periférica, o nosso concelho não tinha uma tradição de produção certificada de Vinho do Dão. Isto mudou e desde há uns anos a esta parte que existem três produtores que certificam regularmente os seus vinhos como Dão e que têm ganho medalhas de ouro, grande ouro e platina em diferentes provas e concursos regionais, nacionais e internacionais. Temos, porém, a noção de que estamos na periferia da região e que precisamos de trabalhar muito, bem e durante gerações para termos um papel de relevo no contexto da Região Demarcada.
NT – Que potencial é que vê neste território?
AC – Nós somos aquilo a que se pode chamar um território rural intermédio, nem extremamente remoto, nem péri-urbano. Estamos a meia hora dos principais eixos rodoviário e ferroviário do país, a 1 hora da fronteira e a 1 hora e meia dos segundo maior aeroporto e porto de mar do país, respetivamente. Temos um tecido económico relativamente equilibrado, já com alguma indústria, mas ainda com muito pouco turismo. Temos um potencial considerável por aproveitar. Limitando-me ao que tem mais a ver com os nossos recursos endógenos, acho que poderíamos multiplicar várias vezes a nossa produção agrícola e florestal, em setores como o vinho, a pecuária de pequenos ruminantes, incluindo a produção de queijo, a horticultura e fruticultura e toda a fileira florestal, incluindo o pinheiro bravo, o pinheiro manso, o eucalipto ordenado e espécies para madeira a médio e longo prazo, como o castanheiro, a cerejeira e o carvalho. E temos que voltar a apostar em unidades transformadoras destes recursos endógenos, que são as mais resilientes, por estarem assentes em recursos locais endógenos, logo menos suscetíveis a perturbações ou disrupções nas cadeias de abastecimento.
Para isso precisamos de políticas públicas que apoiem a organização da produção agrícola e o investimento na agricultura e na floresta. Políticas que têm que deixar uma forte margem de envolvimento para as autarquias locais e as comunidades intermunicipais e, obviamente, para o associativismo agroflorestal, incluindo as cooperativas.
Como estamos numa região onde a propriedade está altamente fragmentada e a agricultura é de pequena escala e não especializada, temos sido uma espécie de enteados da política agrícola, designadamente da Política Agrícola Comum – a PAC. Vamos iniciar agora um novo ciclo de políticas para o setor até 2026 – o chamado PEPAC (Programa Estratégico da PAC), mas não vejo lá as medidas que seriam necessárias para apoiar e relançar a agricultura nas áreas vulneráveis aos incêndios, em que, infelizmente, nos inserimos. Atividade agrícola que, para além da criação de valor, da fixação das populações, de garante do ordenamento do território, do ambiente e das paisagens, é, como bem sabemos os que aqui vivemos ou trabalhamos, a medida mais eficiente de prevenção dos incêndios.
NT – Vão continuar a expandir a área de vinha em S. João da Boa Vista?
AC- Para já precisamos de gerir o património vitícola existente, aumentar a produtividade e continuar a melhorar a qualidade. Ou seja, consolidar os investimentos que já fizemos que, entre as vinhas, os equipamentos, as infraestruturas e a adega, já não são pequenos…
NT- Quais os projetos futuros?
AC- Como referi acima, vamos tirar o maior partido possível dos investimentos já realizados, antes de pensar em novas plantações, apesar de isso também ser uma variável sempre presente. Também estamos a pensar em apostar mais no enoturismo e na autosuficiência energética.
NT- Este projeto é indissociável da sua ligação ao mundo rural e às questões relacionadas com o desenvolvimento rural. Foi, aliás, Ministro da Agricultura, nos Governos do Prof. Cavaco Silva, Ministro do Ambiente no Governo do Dr. Durão Barroso e é, há vários anos a esta parte, Presidente da CVRDão. A vinha e o vinho, na Região Demarcada do Dão, estão a sofrer uma transformação?
AC– Sem dúvida. A Região Demarcada do Dão, tal como sucedeu noutras regiões vitivinícolas, passou por diversas fases ao longo da sua centenária história, desde a sua criação em 1908. Umas boas, outras menos boas. No que respeita ao mercado interno, o Dão não estava habituado a ter forte concorrência no mercado dos vinhos tintos de qualidade. Porém, quando, após a adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) e graças aos apoios por esta concedidos, várias regiões do país começaram a produzir também vinhos de qualidade, como o Douro (que praticamente só fazia vinho licoroso) e o Alentejo (que até essa altura tinha uma expressão marginal na produção vinícola nacional), o Dão teve alguma dificuldade em reagir à concorrência das novas regiões produtoras emergentes, tendo sofrido uma relativa letargia nas décadas de 1980 e de 1990. Contudo, a partir de meados desta última década, iniciou um processo de recuperação, com a reestruturação das suas vinhas e a atualização tecnológica dos processos de vinificação. Graças a essa estratégia, o Dão tem conseguido reunir massa crítica de empreendedores e profissionais, ganhar dinâmicas de inovação, desenvolvimento e qualidade e, a pouco e pouco, recuperar do tempo perdido nesse passado não muito distante.
NT- O que é que distingue o Dão das outras regiões?
AC- A Região Demarcada do Dão tornou-se historicamente famosa devido aos seus tintos. E estes ainda continuam a representar mais de dois terços da sua produção. Todavia, a Região está agora a ser redescoberta pelos seus excelentes vinhos brancos, graças, especialmente, ao Encruzado, não só enquanto casta de vinhos monovarietais únicos, mas também pelos vinhos de lote que proporciona, especialmente em associação com a Malvasia Fina e ou o Bical. A produção de espumantes está agora a disparar, sendo já vários os produtores que os produzem.
Os vinhos do Dão distinguem-se pela complexidade, elegância, equilíbrio, potencial de envelhecimento e combinação perfeita com a gastronomia. Este é, aliás, um dos fatores críticos para o sucesso do Dão: o facto de os seus vinhos serem tão gastronómicos, com acidez excecional, de aromas complexos e delicados, com grande capacidade de guarda, apresentando um boquet extraordinário, num mundo que cada vez mais rejeita o rolo compressor da padronização de sabores e perfis qualitativos impostos pela impiedosa globalização.
NT- O que é que ainda falta fazer no Dão?
AC- Como acima referi, nós somos uma Região Centenária, que foi demarcada como região produtora de vinhos de excecional qualidade por decreto régio de 18 de setembro de 1908. Por isso, pelo sucesso que os seus vinhos alcançaram, creio que posso dizer que o futuro dos vinhos do Dão está no seu passado… Ou seja, precisamos de reencontrar o nosso ADN e reinventá-lo permanentemente: preservar as nossas castas tradicionais, manter a genuinidade e a qualidade dos nossos vinhos, qualificar continuamente os nossos recursos humanos, reforçar a promoção, a notoriedade e a internacionalização, desenvolver o enoturismo e melhorar a criação de valor para todos os agentes económicos da fileira. O futuro dos Vinhos do Dão passará, sem dúvida, por estes principais eixos estratégicos de ação.