Decorridos cinco anos do grande incêndio de 15 de outubro de 2017, há memórias que não se apagam. Algumas das mais marcantes passaram-se ao nível dos cuidados médicos, onde o Centro de Saúde de Tábua, na altura a funcionar ao fim de semana até às 24 horas, teve um papel fundamental, abrindo as suas portas pela noite dentro para acudir às muitas mazelas – físicas e psicológicas- que iam aparecendo, já que a certa altura as pessoas iam chegando ao Centro de Saúde apenas porque sentiam ali um “porto seguro”.
Há mais de três décadas a exercer medicina no concelho de Tábua, o conhecido médico de família, António Capela Daniel nunca tinha passado por uma catástrofe assim. “A certa altura começaram a vir pessoas, a virem mais pessoas que se sentiam bem aqui, e até às 23horas correu tudo bem, apareciam uns feridos ligeiros, que vinham a fugir do incêndio, começaram a vir uns asmáticos, umas dificuldades respiratórias, só por volta das 23h30m é que nos deparamos com um cenário de horror quando entraram por aqui dentro dois indivíduos completamente queimados, pai e filho de Midões, que vinham completamente queimados”. “O pai tinha 100% de queimaduras no corpo” recorda o médico, ainda impressionado com a imagem que guarda destas duas vítimas. A situação era de tal como forma dantesca que o carro de um compadre que os conduziu até ao Centro de Saúde incendiou-se ali mesmo, no parque de estacionamento.
“Não imagina: toda a gente aos gritos e eles todos queimados a entrar por aqui dentro, nunca mais me esquece que a única coisa que não tinha ardido era um maço de notas que o pai trazia no bolso das calças”, conta o clínico, lamentando que o indivíduo tenha falecido poucas horas depois a caminho do hospital de Viseu, porque aqui “não conseguimos sequer encontrar nenhuma veia para pulsionar a medicação”. “Ao filho conseguimos e foi isso que o aguentou até de manhã com os analgésicos todos que, entretanto, nós tínhamos pedido à Santa Casa da Misericórdia, e valeu-nos também uma ambulância SIV que seguia para Oliveira do Hospital, deixar aqui algum reforço de medicação”.
“Conseguimos aguentá-lo com muita água, muita água, e felizmente o «puto» safou-se, felizmente safou-se porque tinha 75% do corpo queimado, era uma situação muito complicada”, lembra o médico, que recorda a cara das pessoas que iam chegando e se iam acomodando nas várias salas entretanto improvisadas no Centro de Saúde para receber as emergências.
“Era incrível, era um silêncio incrível, as pessoas estavam impávidas, havia pessoas descalças e praticamente nuas a chegar, mas ao mesmo tempo estava tudo calmo, ninguém sabia o que estava a acontecer”, observou o responsável por aquela unidade de saúde tabuense, lembrando que os dias a seguir ao incêndio também não foram fáceis para os profissionais de saúde, tendo havido muita gente a aparecer com queimaduras que “duraram semanas e algumas meses a tratar”.
“E depois foi a parte do stress pós traumático que nós estávamos à espera, nós temos aqui utentes que ainda hoje não lidam bem com a situação e continuam a tomar anti depressivos, porque arderam coisas que nunca mais podem voltar”, refere o “Dr. Daniel”, como é carinhosamente tratado e conhecido pelos seus utentes, não tendo dúvidas que esta foi a primeira grande pandemia que a região viveu. “Foi a noite mais longa, mas tenho a sensação que fizemos tudo direitinho e cumprimos a nossa missão, não falhou nada, se não fossem os queimados graves, que foi uma coisa impressionante, para não esquecer, para mais não esquecer”, diz, a concluir o médico há 30 anos em Tábua.